A escravização humana contribui para a perpetuação da pobreza, impacta a saúde pública, a assistência social, a agricultura e impossibilita os níveis de elevação de escolaridade. “É um dos nossos objetivos pensar esse problema multifatorial como um problema de todos”, convoca José Humberto da Silva, coordenador do projeto do Instituto Trabalho Decente (ITD).
Para o Instituto, a escravização humana é um problema multifatorial, global, nacional, e também local. Sendo assim, os governos municipais precisam entender o trabalho escravo como um crime que não só afeta e gera consequências para o indivíduo submetido a essa situação, como também impacta, diretamente, o desenvolvimento local.
Por meio de atividades formativas, o ITD mobilizou servidores públicos e trabalhadores rurais de quatro municípios baianos - São Gabriel, Canarana, Lapão e Bonito a refletir sobre essas questões e criar soluções compartilhadas. Dados de pesquisa realizada pelo GFEMS (2023) revelam que, desses municípios, migra uma significativa quantidade de pessoas para trabalhar na colheita do café no sul de Minas Gerais, região brasileira que concentra uma das mais importantes produções do grão.
Servidores do município de São Gabriel
Trabalhadores do município de São Gabriel
Prefeito de São Gabriel
A formação desses trabalhadores para a melhor consciência dos seus direitos é associada à articulação com prefeitos, secretários e à qualificação da equipe técnica das diversas secretarias para lidar com esse tema. A atuação nos municípios busca colaborar para a promoção do trabalho decente na cadeia do café.
A proposta da formação com os agentes públicos coloca luz sobre esse problema que acontece historicamente na região e colabora para que os agentes da política pública identifiquem as consequências desse processo para o município e construam alternativas de enfrentamento. Trazer o problema para a pauta de discussões é, para a equipe do ITD, o primeiro passo, porque, apesar de reconhecer um importante processo migratório de trabalhadores para as regiões produtoras de café, não havia entre estes, a identificação de que foram submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão.
Durante a formação nos quatro municípios, alguns dos 117 servidores públicos participantes manifestaram opiniões sobre o processo migratório. Relataram, por exemplo, que "o êxodo de trabalhadores prejudica que o município consiga gerar desenvolvimento social, e isso não gera riqueza para o município"; "tem muitas mortes e desaparecimentos de quem vai para o café"; "o Estado brasileiro precisa pensar no desenvolvimento desses municípios"; "a migração acontece porque existe um ciclo de vulnerabilidade... esses trabalhadores estão saindo dos municípios pobres, não é?"; "será que não conseguimos aproveitar toda essa mão de obra que sai do município aqui dentro?"
Para o ITD, o incremento das políticas básicas de proteção é fundamental, mas não é o suficiente. Proposições para geração de emprego e renda nesses municípios também são buscadas durante o processo formativo. “Estamos tentando produzir um ambiente de reflexão e ações propositivas que reverberam em políticas públicas de enfrentamento ao trabalho escravo, bem como fomentar uma agenda pública pautada no trabalho decente e na promoção do desenvolvimento local sustentável”, afirma José Humberto.
A proposta da formação dos trabalhadores: muitos dos 105 trabalhadores de São Gabriel, Canarana, Lapão e Bonito que integraram os espaços formativos já estiveram nas lavouras de café. Eles narram as situações de exploração do trabalho a que foram submetidos, mas não compreendiam que tais situações são caracterizadas como crime pela legislação brasileira e uma violação dos seus direitos humanos de pessoa trabalhadora. "Se tivesse oportunidade aqui na cidade, ninguém saia pro café, não"; "dá poço artesiano e nós fica... com uns 1500,00 por mês, nós tem vida digna aqui", dizem os participantes.
Trabalhador do município de Canarana
Trabalhadores do município de Lapão
Trabalhadores do município de Bonito
Outros por suas condições de vida vulneráveis estão sujeitos a migrar para o sul de Minas Gerais em busca de alternativas de trabalho. O ambiente formativo busca esclarecer sobre as situações de violação de direitos e informar sobre como acionar mecanismos de proteção quando se depararem com uma situação de escravização. Os trabalhadores manifestam-se com clareza após vivenciarem a formação: "Tô vendo que nós foi escravo e nós nem sabia"; "Fui escravo sem saber", dizem. "Nós temos que abrir a boca e denunciar, porque se não fizer vamos morrer lá dentro [das fazendas que os submetem a situação de escravidão]".
Os vazios da escravidão contemporânea - É possível dizer que uma das razões da continuidade do trabalho escravo no Brasil tem origem na situação de vulnerabilidade socioeconômica da população. Ao analisar o perfil socioeconômico dos três municípios e os dados dos resgates de trabalhadores na colheita do café em Minas Gerais, o paralelo é evidente.
Segundo dados do IBGE, as cidades contempladas são essencialmente rurais; faltam postos de trabalho formais e informais e há um histórico geracional de migração para a produção de café no Sudeste. A maioria da população vive com até meio salário-mínimo per capita, representando pelo menos 65% dos moradores. Além disso, uma parcela significativa encontra-se em situação de extrema pobreza, correspondendo a pelo menos 23% da população. Juntas, as cidades possuem 45 comunidades quilombolas certificadas.
A Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, Minas Gerais, por sua vez, teve o maior número de ações fiscais (117 do total de 462 em todo país) em 2022, com um resgate de 1.070 trabalhadores. De acordo com dados atuais do SmartLab , o cultivo do café foi o setor com o maior número de resgatados nos últimos 5 anos: 1.162 trabalhadores.
O perfil dos trabalhadores resgatados nessas cidades também é compatível com o que se observa nos dados nacionais. De acordo com o SmartLab, entre 2002 e 2022, a grande parte dos trabalhadores resgatados são homens, jovens entre 18 e 30 anos, 74% são pretos e pardos e a maioria com escolaridade até o 5°ano incompleto, sendo 24% dos resgatados analfabetos.
CAFE - Essas atividades formativas do ITD na Bahia são implementadas no âmbito de uma ação mais ampla, que extrapola o território baiano, nomeada ‘Programa CAFE’. Trata-se de uma iniciativa desenvolvida pelo Fundo Global para o Fim da Escravidão Moderna (GFEMS), em parceria com organizações diversas, por meio de um Acordo de Cooperação com o Departamento de Estado dos Estados Unidos da América.
A sigla CAFE corresponde ao que seria no original em inglês Comprehensive Action towards Forced Labor Eradication (CAFE) que, em tradução livre, pode ser compreendido como Ação Abrangente para a Erradicação do Trabalho Forçado (CAFE).
Aqui na Bahia, sob a responsabilidade do ITD, o Projeto Café prevê etapas de formação continuada. Este primeiro ciclo formativo foi possível graças ao trabalho prévio de sensibilização e pactuação com os Prefeitos, que são os chefes do poder público local. São previstas mais duas visitas aos municípios no próximo ano. O trabalho no município, após esse primeiro ciclo formativo, permanece e é acompanhado pela equipe do ITD.
Por: Scheilla Frota Gumes