As instituições que garantem o adequado desenvolvimento da sociedade são formadas de pessoas em toda a sua diversidade. Como garantir integração e igualdade de gênero em nossa sociedade sem, primeiro, garantir que essas pessoas e as instituições que elas representam compreendam e incluam tais perspectivas em seus planejamentos e em suas ações? É com essa perspectiva em mente e a partir do entendimento da importância do gênero no mundo do trabalho que o Instituto Trabalho Decente (ITD) atua no diagnóstico, desenho de ações e formação técnica em transversalidade de gênero no serviço público.
Foi assim que, com apenas seis meses de criação, o ITD ofereceu consultoria técnica para garantir a integração de gênero na formulação e implementação do SECISA, Sistema Estadual de Clima e Incentivos aos Serviços Ambientais do estado do Amapá. A consultoria foi executada no segundo semestre de 2019 como parte do projeto “Florestas pelo Clima: sistema jurisdicional de serviços ambientais e REDD+ do Amapá”, uma parceria da Conservação Internacional do Brasil, financiadora da iniciativa, e do governo do Amapá.
No Amapá, o SECISA se alinha à priorização dada pelo estado à conservação ambiental e desenvolvimento sustentável. Entre florestas, várzeas, cerrado e manguezais, o Amapá conta com o maior corredor de biodiversidade do Brasil, integrando a Amazônia Legal. É também o estado mais conservado do país: suas áreas protegidas, que incluem 12 unidades de conservação federais, 5 estaduais, 2 municipais e 4 Terras Indígenas, somam aproximadamente 72% de seu território. Diante do enorme potencial socioambiental da região, torna-se essencial o compromisso com a manutenção dos ecossistemas, fundamentais para o bem-estar humano.
Quem está à frente do projeto Florestas pelo Clima como representante do governo do Amapá é Mariane Nardi, Coordenadora para Clima e Serviços Ambientais da Secretaria do Meio Ambiente. Segundo Mariane, a relação entre gênero e desenvolvimento sustentável pode ser observada tanto no impacto que o clima tem na população feminina, quanto na contribuição positiva que as mulheres podem trazer ao tema. “Existem alguns estudos que relatam a importância de um olhar para a mulher nas políticas de clima, porque dentro do cenário de mudanças climáticas existem indícios de que as mulheres são mais atingidas, mais vulneráveis do que os homens às mudanças climáticas”, explica. Mariane também ressalta que há um histórico de grande sucesso em projetos governamentais que buscaram reforçar a participação feminina, inclusive na temática ambiental.
Segundo Mariane, “é importante que dentro da própria instituição, assim como na construção de políticas de clima, de acesso aos recursos florestais e ao manejo nas comunidades, as mulheres sejam consideradas, até para que seja gerada autonomia nessas comunidades e para que as mulheres possa tomar decisões”. Apesar do inquestionável benefício que a integração de gênero leva a quaisquer projetos de desenvolvimento, a tarefa ainda é árdua. Mariane relatou também as muitas dificuldades encontradas durante o desenho e implementação do projeto, desde lacunas no conhecimento da equipe em relação a aplicação de recortes de gênero em políticas de clima, até a dificuldade de envolver participantes homens nas iniciativas do projeto. Nesse contexto de obstáculos, “o trabalho do ITD foi extremamente importante para nos trazer um olhar de gênero para dentro da construção de políticas, porque nos faltava embasamento para pensar sobre isso”, explicou Mariane.
O Instituto Trabalho Decente tem o gênero no mundo do trabalho como uma de suas áreas temáticas prioritárias. Segundo Patrícia Lima, Diretora-Executiva do Instituto: “para o ITD, considerar a perspectiva de gênero é fundamental para qualquer discussão acerca do trabalho decente e do desenvolvimento sustentável, considerando que esse é um tema estruturante da pobreza que vai estar diretamente relacionado às desigualdades detectadas na sociedade. É preciso que os atores sociais envolvidos em qualquer iniciativa relacionada ao desenvolvimento sustentável entendam a complexidade dessa temática, a importância dela e seu caráter universal, no sentido de que esse não é um debate que diz respeito apenas às mulheres; diz respeito à sociedade, e deve ser tratado em todas as instâncias, especialmente nas decisórias. Por isso, é tão importante garantir a transversalidade de gênero nas políticas públicas a nível institucional e organizacional”.
Para apoiar a integração de gênero no SECISA, o ITD realizou um diagnóstico das políticas, planos, programas, projetos e mecanismos existentes no Amapá que promovem a participação inclusiva de mulheres nas políticas públicas e, a partir dos pontos fortes e fracos encontrados, elaborou uma estratégia com ações e mecanismos para promover a participação inclusiva e efetiva de mulheres na criação e implementação do Sistema. Patrícia, que esteve na liderança do projeto em nome do ITD, se deslocou ao Amapá e realizou rodadas de diálogo com servidores públicos para aprofundar o assunto durante a etapa de diagnóstico.
Mariane Nardi (fileira inferior) e demais participantes na oficina de capacitação em transversalidade de gênero nas políticas públicas, ministrada pelo ITD
O ponto alto do projeto foi uma oficina de capacitação em transversalidade de gênero nas políticas públicas, realizada nos dias 29 e 30 de agosto de 2019 com participantes de diversos órgãos públicos — incluindo a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a Secretaria Extraordinária de Políticas para os Povos Afrodescendentes e diversas outras — resultando em uma rica diversidade de pontos de vista, um dos pontos fortes do processo de diálogo social efetivo. Durante a oficina, foram discutidos conceitos e o contexto das mulheres no setor público e nas políticas públicas, associando o tema da desigualdade de gênero com os demais aspectos das relações sociais. Também foi pautada a importância da transversalidade e da intersetorialidade de gênero nos programas e nas políticas de combate à pobreza, geração de emprego e renda e desenvolvimento sustentável.
Na oficina, integrantes de diversos órgãos públicos participaram ativamente no debate sobre gênero
“Fizemos o workshop porque entendemos que a temática de gênero precisa perpassar todas as instituições envolvidas no processo, para que cada uma, dentro de suas competências institucionais, entendam como a temática de gênero está se refletindo e principalmente como isso pode estar resultando em desigualdades que, sem esse olhar atento e qualificado, passam despercebidas, são invisibilizadas”, relatou Patrícia, instrutora da formação. “Durante a oficina nós mostramos como a falta de um olhar específico causa impactos negativos nos resultados de qualquer projeto de desenvolvimento, em qualquer área — incluindo a ambiental, como é o caso do SECISA”.
Patrícia Lima apresenta o Seminário de Integração da Temática de Gênero nas Políticas Públicas
Segundo participantes, a oficina estimulou novas ideias e contribuiu positivamente para a abordagem da integração de gênero em suas instituições. Em avaliação do evento, uma participante destacou o aspecto prático da oficina, que levou em conta as peculiaridades com as quais cada diferente instituição lida no âmbito de suas atuações, reforçando que o tema de gênero é relevante e aplicável a todos. No dia 27 de setembro de 2019, outro importante evento fechou as atividades da consultoria, o “Seminário de Integração da Temática de Gênero nas Políticas Públicas”, com membros do FAMCSA, Fórum Amapaense de Mudanças Climáticas e Serviços Ambientais.
O seminário ampliou o debate sobre gênero entre os participantes, membros do FAMCSA
Acerca da consultoria, Patrícia relembra todo o processo com muito afeto. “Nós temos um carinho especial por esse projeto pois foi o primeiro implementado pelo ITD. Com muito pouco tempo de criado, formamos parcerias com a Conservação Internacional do Brasil e com o governo do Amapá, fomos recebidos por esses parceiros e pelos atores locais com muita receptividade e lançamos importantes sementes”. Dentre os resultados, Patrícia destaca um relatório robusto entregue à equipe do Florestas pelo Clima que traz a extensa expertise dos associados do Instituto e os resultados da formação realizada. “Em nossos projetos, sempre buscamos produzir materiais informativos e técnicos, tanto para subsidiar os debates durante os próprios projetos como para deixar um legado de produção de conhecimento quando os projetos acabam”, explica Patrícia.
Trecho do importante documento resume com eloquencia a urgência de iniciativas com esse cunho em nossa sociedade: “a busca por integração de gênero no SECISA corrobora com o reconhecimento de que fatores históricos, culturais e econômicos levam a que mulheres enfrentem barreiras diversas que as impedem de usufruir, de forma plena, dos frutos do desenvolvimento. Sejam as dificuldades de inserção, manutenção e permanência no mundo do trabalho pelo trabalho decente, seja pelos alarmantes dados de violência contra a mulher, seja pela sobrecarga das responsabilidades familiares, seja pelas dificuldades impostas para que alcancem e permaneçam em quaisquer espaços de poder e decisão na sociedade, é fato que para efetivar qualquer iniciativa de crescimento econômico e desenvolvimento sustentável, é preciso conhecer e incorporar a realidade das mulheres enquanto grupo social historicamente discriminado, para que sejam adotadas iniciativas inclusivas que garantam que todos e todas sejam contemplados e que o projeto de desenvolvimento realmente se efetive".
No momento, o SECISA segue em construção; segundo Mariane, sua implementação depende da consolidação de leis estaduais que estabelecem a política estadual de mudanças climáticas e incentivo de conservação de servicos ambientais.
Por Thais Magalhães Rosa